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Música brasileira? Músicas brasileiras?

por Kilza Setti, São Paulo, janeiro 2017

Uma discussão sobre as diversas categorias musicais no mundo exigiria muita informação e tempo para reflexão. Nos anos de 1960/70, Jean Jacques Nattiez, um dos pioneiros a trabalhar conceitos e métodos da semiótica da música, falava em fenômenos musicais.

Não me compete aqui enveredar para áreas da fenomenologia ou semiologia da música. Diante das limitações deste artigo e para não invadir outros espaços como por exemplo, o da Filosofia, optei por usar a expressão fatos musicais e com tal recurso, me valer de outros meios de expressão artística . Vejamos: se admitimos a ideia de fatos, ou como sugere Nattiez, fenômenos musicais, ou fenômenos/fatos sonoros (cantos de pássaros, cantigas vernaculares, quartetos de Beethoven, jogos vocais dos povos da floresta Ituri ou dos povos Inuit, sinfonias de Brahms, obras de Ligeti, ou as sofisticadas polifonias vocais dos trallaleri de Genova, etc. etc.), poderíamos também pensar em fenômenos/fatos pictóricos (desenhos rupestres, obras de Picasso, Portinari, Piranesi, atuais grafites, desenhos de nossos povos indígenas, etc. etc.) ou ainda lembrar fenômenos/fatos poéticos ( formas poéticas dos antigos povos, adivinhas, parlendas, obras de Camões, Alighieri, Drummond, romanceiros de cegos , até mesmo, por que não? textos admiráveis do nosso cancioneiro, dentre centenas deles, lembro Chão de Estrelas, ou Beatriz...)

Enfim, fatos musicais têm conexões com povos, sociedades ou ambientes onde ocorrem. De todo modo, tentarei escapar de armadilhas com as quais nos ameaçam palavras tais como: sociedade, povo, elite ( esta, carregada de sentidos ambíguos e talvez equivocados), deculturação, transculturação, cultura etc. Dessa última, muitos filósofos, antropólogos, sociólogos, já se ocuparam em definir ou conceituar, desde o início do século 20. No Brasil, entre outros, lembro o contemporâneo Alfredo Bosi, que em admirável artigo, reflete sobre os mais recônditos sentidos atribuídos ao conceito de cultura e o faz de modo exemplar (Bosi,1994:11-63). Não escaparemos, porém, de abordar aqui as várias vertentes culturais, que nos enredam, pois envolvem atividades artísticas, entre as quais, as lides com a música. Josep Martí fala em entramados culturales, tramas, tecidos culturais que englobam em si diferentes percepções da realidade. Para o autor, o conceito de cultura pode confundir-se com os diversos conceitos de sociedade – o que poderia conduzir à noção de identidade cultural. Tomar conceitos como o de identidade cultural, levaria eventualmente a uma tênue mas desconfortável ideia de cultura autêntica (ainda que dispensássemos os rótulos “nacional” e ou “regional”). Teríamos aí um novo complicador nessa discussão: ora, todos sabemos que numa época de mundialização, ou globalização dos sistemas e das práticas culturais, já não seria adequado falar em autenticidade. Poderia soar como algo residual de sistemas colonialistas ( Martí, Josep: 2002).

Parece justo não louvar os nacionalismos perniciosos, mas justo será também, sentir, reconhecer e desfrutar dos caminhos e sabores musicais dos diferentes povos. Não há como ignorá-los. Esses caminhos foram buscados e trilhados por tantos...desde Lizst, Debusssy, Kodaly, Ravel, Bartok, muitos e muitos outros.

Tomando-se particularmente o caso do Brasil, como poderíamos defini-la: música brasileira? Músicas brasileiras? Ou deveríamos pensar em sua pluralidade. Mais complicado ainda: se admitirmos a ideia de que música brasileira é toda aquela produzida no Brasil, ainda assim, seria preciso admitir que cada compositor, brasileiro ou não, de qualquer das categorias musicais, pode ter diferentes percepções da(s) realidade(s) ou ambiente(s) brasileiro(s), ou lembrar também, que alguns compositores preferem permanecer alheios ao que se considere ou se caracterize como realidade brasileira. Tendem a deslocar foco e energia de seu trabalho, na direção de uma esfera muito mais ampla, universal, talvez até em futuro, interplanetária... De todo modo, supõe-se um produto musical provavelmente processado no Brasil, por brasileiros, ou estrangeiros aqui radicados.

A Antropologia do século 19 abrigou várias vertentes teóricas. Entre elas, a do difusionismo : ideia de que determinados traços de uma dada cultura poderiam migrar, serem difundidas e apreendidas por outras culturas. Entretanto, na sociedade contemporânea, mesmo em meados do século 20, antes da maciça pressão das mídias, dos meios de comunicação e avanços da informática, as teorias difusionistas, tal como foram propostas, já haviam perdido força. Se os recursos da comunicação eletrônica, das redes sociais, se encarregam hoje de apagar identidades culturais, como poderemos pensar a(s) música(s) brasileira(s)? Talvez uma alternativa: imaginar a infinidade de músicas ditas brasileiras, em situação de simultaneidade.

Voltemos ao conjunto das edificações: ideias e sons ao qual chamaríamos em bloco, de música brasileira. Essa arquitetura de intenções, propostas, ideologias, conceitos, partidos, articulações de sons, tempos, ruídos, silêncios, poderia pressupor certa unidade que a justificasse como um todo ? Mas a qual unidade podemos nos referir? Para além da dificuldade em caracterizar e conceituar música brasileira, mais problemas surgiriam ao se pretender buscar a gênese dessa música. Matéria volátil, infinitamente pulverizada e multifacetada. Pela ótica da Musicologia Histórica ou da História Social da Música no Brasil, não há como resistir à clássica tendência de partir do processo de conquista das Américas e subsequente convívio com europeus e missões de catequese. Esse parece ser o marco, o ponto de partida para um suposto início do que seria uma pré-história da música no Brasil – marco ainda que limitador – posto que calculado já partir dos tempos pós-colombianos e pós-cabralinos. Simultaneamente fim e começo, teve como condição mesmo de sua existência, o extermínio gradativo da música dos séculos anteriores. Afinal, o que sabemos sobre os sons, ou experimentos musicais do homem dos sambaquis, embora trabalhos em sítios arqueológicos mostram eficiência e ativa presença ainda hoje no sudeste do Brasil? Em países da América Hispânica, escavações têm sido bem sucedidas. São divulgados achados reveladores( ocarinas, flautas e outros artefatos) que permitem mesmo proceder-se a uma arqueologia da música, caminho para se chegar a uma proto-história da música latino americana. No Brasil, antropólogos,arequeólogos e estudiosos da paleontologia trabalham intensamente em reconstituições. Mas de todo modo, nossos dados mais concretos sobre possível atividade musical datam do início do século 16. A historiografia revela descrições e relatos de viajantes, botânicos, médicos, cientistas europeus, além de rica iconografia, desde Staden, Anchieta, Léry, Rugendas, Martius, K. Von den Steinen ,Koch-Grünberg e outros tantos, que contribuíram com registros e com grafias em pauta de música vocal de alguns grupos indígenas do Brasil. É justo lembrar sobretudo,na virada para o século 20, a dedicação de antropólogos e etnomusicólogos estrangeiros e brasileiros como Roquette-Pinto, Schaden, Desidério Aytai, e inúmeros outros, que a partir das primeiras décadas do século passado, vêm enriquecendo o acervo de estudos sobre a prática musical de povos autóctones do país. Contribuição de valor inestimável que tem estimulado novas e constantes pesquisas.

A presença europeia, entretanto sempre foi constante, assim como a adoção das teorias da música ocidental. Não há como descartá-la. Etnomusicólogos asiáticos queixam-se do mesmo problema: supremacia dos repertórios europeus nos cursos dos conservatórios de seus países e pouca informação ou interesse pela música ou por compositores da Ásia ( cf. T.V.KHÊ ,1980). Passamos também por processos de desenvolvimento musical marcados por contínua releitura de períodos, como medievalismo, classicismo, romantismo, impressionismo, serialismo, dodecafonismo, minimalismo e uma constante busca de novas tendências, já neste século 21. Tivemos o período áureo com o valioso repertório sagrado do barroco mineiro: música sacra brasileira? Europeia? Na América Hispânica, mais precisamente em regiões do atual Paraguai e Bolívia, entre os séculos 17 e 18, registraram-se belíssimos exemplares de repertório barroco, compostos e cantados por nativos das Missões entre povos Chiquitos, Moxos e Canichanas que, assim como os povos Guarani do Brasil, tiveram contato com músicos e teóricos europeus no período das anteriores Reduções. São loas, coplas e até peças do repertório sacro barroco, cantados nos idiomas nativos e dedicados à rainha Maria Luísa de Borbón da Espanha. Música boliviana? Europeia?

Abro um parêntese: pelo volume, riqueza, assombrosa variedade e importância da expressiva herança dos povos de diversos países da África, para o Brasil trazidos, não tratarei aqui dos repertórios de derivação africana, tema por demais amplo, que exige sérios e profundos estudos sobre implicações políticas, sociológicas, mercantilistas, além de grande domínio e conhecimento. Seriam necessários muitos estudos somente dedicados a essa preciosa contribuição e legado africanos entre nós. Já a música portuguesa de tradição oral foi pouco divulgada por aqui, ou quase que ignorada.

Mas, de todo modo, entramos assim numa trama sem saída. Difícil definir com clareza: música brasileira? ou mais complicado ainda : música erudita brasileira ( ou pior: música clássica...) Esses rótulos nos colocam num vespeiro. Não há como escapar de rótulos ambíguos como: erudito, popular, povo, classes sociais, etnia, elite e finalmente, música erudita. Carimbos que podem indicar, de fato, divisão ou exclusão social. Poderíamos até mesmo substituir a palavra “erudita” por música de concerto. Altera-se o valor sonoro, mas persiste o valor semântico : concerto pode lembrar ou evocar teatros, sala de concertos, algo infelizmente não acessível à população como um todo

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Sempre haverá um abismo entre a cultura oficial (praticada nos centros de ensino) e a popular ( transmitida geralmente por oralidade). Bosi comenta: “o domínio do alfabeto, reservado a poucos, serve como divisor de águas entre a cultura oficial e a vida popular”(Bosi,1994:25). Ao refletir sobre as observações de Bosi, o que podemos dizer de uma sociedade como a nossa, que nunca privilegiou a musicalização em simultaneidade com a alfabetização? E como sabemos, essa última ainda é absolutamente ineficaz. Mas os temas aqui citados são demasiadamente amplos e demandariam abordagens mais consistentes, que não caberiam neste despretensioso artigo. Resta reconhecer que se faz indispensável a adoção de políticas de reforço que possam propor e concretizar programas simultâneos de alfabetização/musicalização. Não existem soluções a curto prazo. Provavelmente precisaríamos de décadas de trabalho intenso.

Como num sonho a ser realizado, imaginando-se uma sociedade brasileira com domínio completo da escrita, da leitura e de informações sobre as categorias artísticas, talvez tivéssemos possibilidade de conviver com igualdade de oportunidades e capacidade de discernimento, que permitissem uma percepção das diversas situações sociais e políticas das realidades brasileiras. Importante reconhecer que a comunicação da assim chamada música erudita se dá precisamente (e apenas) entre os segmentos da população já habilitados e capacitados a sintonizar e perceber seus códigos. Importante preparar ouvintes capazes de avaliar, selecionar e atribuir os devidos valores às diversas categorias de produção musical. Com capacidade crítica e livres de pressões que atendam a interesses de mercado, ou de produtos com massiva distribuição e cuja função é de apenas entretenimento, portanto, viciados, cristalizados pela repetição, vulgarização e direcionados a determinado público consumidor. A atual ausência de senso crítico reflete o poder dos repertórios oferecidos à saciedade pelos poderosos canais de transmissão. Na verdade, estamos vivendo uma “cultura do barulho”, no império absoluto dos fones de ouvido, além dos fones inteligentes e equipamentos similares.

Importante preparar ouvintes que possam avaliar, apreciar (ou não), mas tentar entender que existem nuances não fixadoras de valores pré-determinados, mas de características próprias: uma Partita de Bach, ou mazurquinhas e folias de nossos rabequeiros populares. Precisamos de ouvintes desarmados de preconceitos, que passem pela experiência de um concerto de Bartok, que aceitem uma roda de choro, ou um grupo de blues, entendam as razões de nossas marchinhas de carnaval, a prática do hip-hop, que consigam interessar-se tanto por um canto ritual indígena do Brasil, como por uma obra sinfônica de Mahler, ou uma valsa de Zequinha de Abreu... Para não mais alongar estes escritos, deixarei para outro momento considerações sobre as tendências da assim chamada composição de vanguarda ( para nós, brasileiros, refiro-me ao tempo que abrange desde a partir da primeira metade do século 20) : música eletroacústica, recomposição, colagem, reinvenção, atonalismo, neo-tonalismo, neo-romantismo e outras tantas tendências estéticas e ideológicas: música/ação política, ou relações música/capitalismo, música/neoliberalismo, etc.

Mas deixo clara minha posição: fazer música é procurar ser verdadeiro e leal consigo. Trabalho individual, solitário, que paradoxalmente envolve o coletivo, as minorias ignoradas, suas carências, seus mínimos e em geral, sempre perdidas no conjunto da população. Cabe ao compositor, sem alarde, apontar evidências.

Música Brasileira? Músicas Brasileiras? Há respostas?


Referências Bibliográficas

AYTAI, Desidério. O Mundo Sonoro Xavante. São Paulo: USP 1985 ( coleção Museu Paulista Etnologia ,vol. 5)

BOSI, Alfredo. Dialética da Colonização. São Paulo: 1994. Companhia das Letras

KHÊ, T V. For a universal history of music: what is lacking in presente-day histories of music. In The World of Music Wilhemshaven vol.22. No.3,1980:39-42

NATTIEZ, J.J. A quelles conditions peut-on parler d´universaux de la musique ? In: The World of Music, Cosenza, Roma, vol. 19, No.1 1977: 106-116

MARTÍ, Josep. Transculturación, globalización y músicas de hoy. In Boletínmúsica,8 2002: 3-21.Casa de las Américas La Habana, Cuba

SPINA, Segismundo. Na madrugada das formas poéticas. São Paulo.Ática,1982 (coleção. Ensaios 86)

ZUMTHOR, Paul. Performance, percepção, leitura. São Paulo, EDUC 2000. Trad. J.P. Ferreira e S. Fenerich.


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