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Gilberto Mendes

Gilberto, persona gratíssima

O que proponho aqui é um brevíssimo depoimento pessoal, desproporcional ao tamanho da alma sobre a qual versam essas poucas linhas.
A devoção e afeto que sinto por Gilberto Mendes fazem-me sentir como um membro de sua família e de suas trincheiras. Neste pequeno texto, explico ambas as matizes de tal dupla asserção. Tive o privilégio de conhecer Gilberto quando eu ainda era muito pequeno. Nasci em 1962; Gilberto, em 1922. São, portanto, 40 anos de diferença etária, quatro gerações, e Gilberto poderia ser meu pai ou mesmo meu avô. Acabou vertendo-se, isto sim, em um “tio”, elo mais genérico de parentesco a quem chamamos de costume as pessoas que nos são animicamente tão próximas.
Filho do poeta Florivaldo Menezes, que hoje tem seus 84 anos e que também tornou-se um grande amigo de Gilberto, vivi em minha casa, em minha primeira infância e até minha adolescência, memoráveis noitadas de encontros intelectuais, nas quais circulavam, até altas horas da madrugada, personalidades da intelligentsia paulista ou atuante em São Paulo, principalmente em torno do núcleo artístico de maior valor e substância cultural entre nós nas esferas do saber erudito: o concretismo. Muitos amigos de meu pai encontravam-se corriqueiramente em bares e, a cada ocasião, na casa de um dos artistas, aos moldes dos famosos encontros intelectuais da Viena ou de Paris de fim do século XIX e início do século XX, e um dos locais desses encontros era justamente minha casa. Pintores ilustres como Alfredo Volpi (cuja casa meu pai visitava frequentemente e em cujo ateliê cheguei a vislumbrá-lo em pleno trabalho de pintura quando eu ainda era uma criança, um privilégio de muito poucos), Hermelindo Fiaminghi, Luiz Sacilotto e Orlando Marcucci, e poetas concretistas como Augusto de Campos, Décio Pignatari, Ronaldo Azeredo, Villari Herrmann, entre outros (como por exemplo Paulo Leminski, que certa vez pernoitou em casa com sua esposa), frequentavam minha casa com assiduidade, cujos debates, às vezes exaltados e sempre permeados de declarações bombásticas e parciais como rezam de (bom) costume as personalidades dos grandes artistas, estendiam-se pelas madrugadas adentro e eram recheados com a presença dos filhos desses criadores, ainda crianças ou adolescentes, num ambiente intelectual e numa convivência de ideias e presenças físicas marcantes de que raramente se tem notícia nos dias de hoje, em que a internet aproxima pessoas que estão distantes de nós ao preço de nos distanciar radicalmente de pessoas que poderiam estar tão próximas. Esses tempos, analógicos, não voltam mais...
E em meio aos músicos, as personalidades de Olivier Toni, Willy Corrêa de Oliveira e Gilberto Mendes estavam sempre ladeando esses encontros, ou fazendo parte deles, efetivamente. Embora menos presentes que os poetas e os pintores, de tempos em tempos as personalidades desses três músicos, sobretudo a de Willy e, em menor medida (por ter sempre morado em Santos), a de Gilberto, marcavam suas atuações em meio às acaloradas discussões estéticas e por vezes ideológicas, o que não dizer pelos seus feitos, muitas vezes fazendo emergir novas obras do entrecruzamento da obra individual desses geniais artistas: poema de um que se baseava no quadro de um outro, e cuja poesia servia de material à composição de um terceiro...
Foi a partir deste convívio que me foi tão caro já em minha infância que, mais tarde, acabei por fazer a III Bienal Internacional da USP nas férias de verão de 1978, aos meus ainda 15 anos, frequentando as classes de harmonia, percepção, análise e composição com pupilos das classes de Composição de Willy e de Gilberto, o que teria me permitido meus primeiros contatos profundos e analíticos com teorias da música contemporânea e com a obra de Anton Webern, ainda grande ícone da vanguarda musical àquela época. Uma experiência tão marcante quanto às memoráveis vivências da infância e adolescência das quais guardamos lembranças e climas que os tempos não conseguem desmanchar, além de, via de regra, dilatá-los em duração e espaço.
Lembro-me que, à mesma época, cheguei a pegar o ônibus na Estação do Jabaquara e descer a Serra para, em Santos, ouvir concertos do Madrigal Ars Viva com estreias de obras corais de Gilberto e de Willy (algumas delas baseadas em poemas visuais de meu pai) em uma das memoráveis edições do Festival Música Nova, criado e animado por Gilberto. Quando hoje comparo aquela minha atitude e esforço, em plena adolescência, com a letargia de muitos de meus alunos, os quais, tendo concertos do Studio PANaroma às suas (ralas) barbas, com a nossa portentosa orquestra de alto-falantes PUTS, sequer se dignificam a estarem presentes em pleno Teatro do Instituto de Artes da Unesp, sou assolado por um sentimento de desânimo e, ao mesmo tempo, de inconformismo...
Todas essas inesquecíveis experiências levaram-me a optar pela USP quando da época de meu ingresso na Universidade, ainda que, ao final dos anos 1970, tivesse eu sido acometido por forte dúvida se não seria o caso de tentar o ingresso como estudante junto à Unesp, pois lá atuava, na área da Composição – e malgrado a forte presença da corrente regressista do nacionalismo musical brasileiro, tão “europeizante” quanto às vanguardas, porém ao contrário dessas essencialmente anacrônico –, o francês Michel Philippot, um dos primeiros músicos a atuar na vertente da musique concrète, a mesma que eu, na adolescência, escutava com paixão e arrebatamento ao mesmo tempo em que descobria a elektronische Musik e a música de Stockhausen, de Berio e de outros da Escola de Darmstadt (a mesma que frequentou Gilberto e Willy, tornando-se aqui, ambos, seus porta-vozes), introduzindo tais feitos musicais a meus amigos do movimento de esquerda secundarista quando nos reuníamos em torno da vitrola de meu pai (eu, como músico, era o único, dentre meus irmãos, que tinha permissão para “mexer na vitrola” em sua ausência). A dúvida se dissipou quando Willy, um pouco pego de surpresa e mesmo em alguma medida abalado quando lhe expus meus conflitos, exerceu certa “pressão” para que eu me tornasse seu aluno na USP, o que, diga-se de passagem, foi a melhor coisa que poderia ter me acontecido! Com Willy aprendi, creio, tudo que sei em termos de Composição Musical, e se assim afirmo, a despeito do fato de que Gilberto era um dos dois professores da área no Departamento de Música daqueles anos, é porque foi com Willy que efetivamente tive aulas de Composição, a maioria em sua casa aos domingos à noite, adentrando as madrugadas de domingo para segunda-feira, em sua cozinha (literal e metaforicamente), abrindo sobre a mesa minhas partituras, vendo seu dedo indicador deslizar sobre o grafite de meus manuscritos, borrando-os ao mesmo tempo em que me apontava problemas que eu fazia emergir e soluções que eu, às vezes ainda delas inconsciente, encontrava para problemas apontados em aulas anteriores. Uma das experiências mais ricas de minha vida...
Com Gilberto, devo dizer, tive na época um contato bem menor e certamente bem menos assíduo. Certa vez, ressentido, Gilberto virou-se a mim e me disse – decerto com exagero proposital e com certo tom provocativo, para ver minha reação –, dentro de um carro em que viajávamos juntos para algum lugar, que “eu não gostava dele”, porque nunca falava que eu tinha sido seu aluno de Composição. Mas não podia tê-lo feito, porque de fato não fui. Gilberto não tinha tanta vontade quanto Willy de ser Professor de Composição. Era mais um interlocutor, um introdutor notável de experiências composicionais, abrindo-nos horizontes diversos e feitos históricos no cenário da Música Nova, mas não se sentindo necessariamente paciente ou à vontade para posicionar-se diante dos problemas de escritura de um jovem aspirante a compositor. Pelo menos comigo, foi assim.
Com o tempo, entretanto, fui aprendendo a ver que as grandes aulas de Composição não se restringem ao artesanato da escritura, à sua dimensão estética. Elas se valem, e devem se valer, de uma dimensão ética profundamente enraizada nas opções estéticas do criador em gestação em debate e confronto com as de seus mestres. E, nesse aspecto, o espírito generoso e profundamente humanista de Gilberto foi uma lição inesquecível para minha formação. Como empreendedor na criação e direção do Festival Música Nova, inúmeros compositores tiveram suas primeiras estreias no Brasil (eu, por exemplo), além de terem tido contato não só com a Música Nova em suas mais distintas vertentes, como também com compositores, músicos e ensembles de todo o mundo que vinham a seu convite para o Festival. Óbvio está que Gilberto sempre impingiu ao Festival seu recorte estético e refletiu nele suas opções e visões pessoais, da mesma forma como, evidentemente, o Festival serviu para a divulgação sistemática de sua própria música. Mas quem sequer ouse em questionar uma atitude com esta é porque jamais fez algo que chegasse a um décimo do que realizou Gilberto, por todos nós, em prol da divulgação da Música Nova em seus mais distintos contextos e matizes. É plenamente legítimo impingir ao que organizamos nossa visão de mundo e nossas atitudes e “crenças” estéticas, assim como é legítimo e louvável que se promova a própria música, a música de sua própria autoria, desde que nela acreditemos como criadores, desde que a amemos. Gilberto agiu sempre da forma mais lisa e transparente na condução de seu Festival e, assim fazendo, propiciou a incontáveis artistas de várias gerações as inesquecíveis experiências das diversas edições deste que, até muito pouco tempo atrás, era o maior evento do gênero na América Latina, mais precisamente até quando Gilberto decidiu, por sua idade avançada, a infelizmente se retirar da condução ativa de seu Festival.
Ao longo de todos esses anos de convívio, aprendi com Gilberto uma das lições mais lindas e substanciais que um jovem pode aprender com um Mestre de seu calibre: que a autenticidade de suas motivações estéticas e políticas, por mais que delas se possa, em alguma medida, discordar ou se distanciar, traduz-se como conditio sine qua non da própria autenticidade artística, pois só assim pode-se exercer a Arte sem comprometimentos espúrios, sem concessões fáceis e com uma profunda verdade de linguagem e de espírito, para expressarmo-nos em termos aparentemente vagos e genéricos. Por tal viés, vislumbramos o teor profundamente, radicalmente humanista de seu longo percurso e, na esteira do que a humanidade produziu de mais progressista, de seu teor genuinamente marxiano. Gilberto é um autêntico comunista, no melhor e até mesmo mais ingênuo sentido desta designação: irradiou suas convicções estéticas e ideológicas sempre acreditando no Homem, possibilitando a muitíssimos a manifestação de suas obras ou de suas atuações como artistas, sacudindo e fazendo o meio musical brasileiro acordar para as mais diversas tendências da Música Nova, doando enorme parte de sua energia e de seu precioso tempo à realização de um Festival do qual todos nós nos beneficiaríamos, e o fez generosamente, humanisticamente, comunisticamente.
Quando aponto certa “ingenuidade”, faço-o em atitude decerto um pouco presunçosa. Um compositor que lhe deve tanto e que é tão mais jovem, como eu, não pode pretender diagnosticar em um Mestre de seu calibre uma ingenuidade à qual eu mesmo estivesse, como comunista que também sou, imune. Faço-o por um viés crítico que me afastara, ideologicamente, tanto de Gilberto quanto de Willy em diversas ocasiões em que discutíamos o papel histórico das esquerdas e, em particular, do stalinismo. Pertencendo a duas gerações (Willy é 20 anos mais novo que Gilberto) de comunistas brasileiros ligados ao PC, ambos nutriram, assim como por exemplo meu pai e mesmo o professor de ambos (tanto de Willy quanto de Gilberto), Olivier Toni, simpatia pela atitudes de Stalin e dos partidos stalinistas, que aqui chegavam como porta-vozes da resistência do pensamento marxista em meio às atrocidades do fascismo, ainda que pelo viés da falsificação ideológica e histórica que tinha por objetivo a ocultação de suas próprias atrocidades. Poucos dentre os intelectuais entre nós – como por exemplo os gênios de um Mário Pedrosa ou de um Lívio Abramo – tiveram, por volta da metade do século passado, a visão aguda de perceber o quão Trotsky e o trotskismo, e somente eles, representavam como salvaguarda autêntica (para utilizar-me mais uma vez desta figura) do projeto marxista revolucionário. No entanto, é difícil e até mesmo injusto, hoje – quanto mais se conhecermos personalidades como a de Gilberto, que irradia autêntica bondade –, infligir certa “culpa” pela adoção de tal ou tal corrente ideológica ou até mesmo partidária, quando as atitudes de toda uma vida apontam para a conclusão contrária, pois esta mesma vida revela-se plena de atitudes de caráter íntegro. A inversão de uma tal situação demonstra-se, porém, como algo pateticamente possível, em que o discurso, de uma aparente lisura marxista inquestionável, revela-se habitado por atitudes genuinamente traiçoeiras ou de caráter dúbio, em uma palavra, por atitudes genuinamente reacionárias.
Assim é que diferenças entre o trotskista que fui – e que, em certa medida, continuo sendo – e o “stalinista” que talvez tenha sido ou, em dada época ou circunstância, se afirmado um Gilberto Mendes acabam quase que por se diluir pela e diante da força do potencial simbólico, fundamentalmente de esquerda, que se alastra e se expande a partir de suas realizações, sejam elas obras, sejam elas feitos como o radicalmente democrático Festival Música Nova.
É conhecendo o homem que se pode, verdadeiramente, balizar suas reais atitudes e o teor radicalmente humanístico que delas emana, ou que delas deixa de emanar. No caso de Gilberto, esta emanação, humanística, marxiana, é uma feliz evidência.
Talvez pareça apelativo o episódio que quero, aqui, narrar em breves palavras, à guisa de conclusão desta singela homenagem a este meu Mestre, pelo fato em si e por suas bifurcações passadas, presentes e futuras. Mas o faço assim mesmo, como depoimento que quer desvelar um pouco do teor deste espírito único. Em fins de julho de 2000, quando perdi meu irmão aos seus 40 anos (o saudoso poeta Philadelpho Menezes) em um estúpido acidente de carro, Gilberto me ligou. Ele o vira crescer, como a mim, ainda que a certa distância e, claro, sem que tivesse mantido com ele um contato mais estreito, ao contrário do que ocorrera comigo. A meu pai, não teve coragem de telefonar. Anos atrás, eu era criança quando, em companhia de meu pai e de Willy, recebemos, na casa do cineasta nosso amigo Clemente Portella, a dramática notícia do suicídio de um dos filhos de Gilberto, um dos mais trágicos acontecimentos de sua vida. Lembro-me como hoje do súbito e inesperado sentimento de tragédia e tristeza que assolou a todos nós, pelo fato em si, mas também e sobretudo pela preocupação com Gilberto, e a consternação profunda que acometera seu companheiro de viagem, Willy. Já nesta ocasião de muitos anos depois, quando deste seu telefonema, mal conseguimos nos falar. Evocando aos soluços aquela triste revivência, contra a qual a tragédia daquele momento inexoravelmente o arremessava, choramos juntos, convulsivamente, apenas isso; por vários minutos, minutos que pareciam e ainda parecem hoje, há/a quinze anos de distância, uma eternidade, pela intensa tristeza e comoção, mas também pelo reconforto e aconchego daquele seu gesto, cujo amparo refletia, profundamente, um teor emotivo e humano como o amor que sentimos e compartilhamos pela Música... Pois chora-se, ao menos daquela maneira, apenas com quem verdadeiramente se ama.
Não apenas tenho a reconhecer e enaltecer publicamente o grande valor desta Alma, mas sobretudo a agradecer a ela por tudo o que nos continua, ainda hoje, a proporcionar e a ensinar, como Músico (e isto já bastaria...), mas também, e talvez sobretudo (porque isto já bastaria!), como Homem: Gilberto, persona gratíssima!

(por Flo Menezes - maio de 2015)

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